sábado, 2 de março de 2013

Humor na literatura de ficção científica

A ficção científica não é muito famosa por seu bom humor. Ao contrário, é um gênero mais alinhado com a futurologia pessimista, o que normalmente não dá muita margem ao riso. Também se costuma enxergar a classe científica como extremamente estóica, e a ficção que adota esse ambiente acaba contaminada também por esse conceito.
De fato, a maioria da fc nem se esforça por ser bem humorada. Ou se dedica a fazer enfadonhos discursos paracientíficos, alertar histericamente para um destino trágico da humanidade, ou ser piegas ao elevar jovens imberbes à situação de salvadores do universo. É claro que, como todos os demais gêneros, essas não são situações únicas. Alguns autores conseguem romper essa previsibilidade e desenvolver trabalhos surpreendentes, que se destacam da mediocridade geral e colocam-se num patamar mais elevado. Obras de teor filosófico, psicológico, épico, perturbadoras, emocionantes, maravilhosas e, porque não, engraçadas.
Na literatura, a fc humorística é rara, mas seus poucos exemplos são trabalhos de qualidade. O autor que mais explorou o filão foi britânico Douglas Adams (1952-2001) em uma série de seis livros iniciada com O Guia do mochileiro das galáxias (The hitchhiker's guide to the galaxy, 1979). Adams criou um universo absolutamente caótico, onde tudo pode acontecer e usa isso em favor do humor. Algumas de suas sacadas nesses livros tornaram-se parte da cultura pop, como o Dia da Toalha (25/05), comemorado no mundo todo por seus leitores.
Mas a verve cômica não é fruto recente na fc. O escritor britânico Arthur Conan Doyle (1859-1930), mais conhecido por ter criado o detetive Sherlock Holmes, é provavelmente o exemplo pioneiro. No livro O mundo perdido (The lost world), publicado em 1912, Doyle insere um humor requintado na relação entre os personagens ao longo de sua perigosa jornada pela Amazônia em busca de um platô lendário onde ainda viveriam dinossauros. Toda a carga cômica é apoiada no personagem principal, o excêntrico Professor Challenger, que tem modos muito característicos de se relacionar com seus parceiros de viagem. Assim, Doyle aproveita para rir dos ridículos da sociedade científica.
O norte-americano Fredric Brown (1906-1972) já ridicularizava a paranóia americana por invasões em plena Golden Age da fc (anos 1940 e 1950), em seu romance Os marcianos divertem-se (Martians, go home..., 1955), contando a confusa invasão da Terra por alienígenas cínicos e absolutamente insuportáveis. Sendo uma invasão virtual – os marcianos surgiam como imagens holográficas –, os humanos não tinham como reagir ao falatório ininterrupto e a descarga de ofensas que eles adoravam proferir e, muitas vezes, a aparição incômoda acontecia em lugares e momentos nada próprios, colocando todos os humanos em estado de completo desespero.
Outro trabalho festejado entre os leitores e, na minha opinião, o melhor momento do humor na fc, é o romance de Harry Harrison (1925-2012) Bill, o herói galáctico (Bill, the galactic hero, 1965). Harrison monta um ambiente típico de space-opera para depois demolir todos os seus elementos, um por um. Bill é um jovem sem nenhum futuro, numa colônia periférica do império galáctico, que é enganado pelo discurso de um militar cuja função é recrutar novos soldados. É claro que tudo o que o fulano diz é mentira mas, depois de alistado, não tem jeito: Bill é embarcado numa nave e, a partir daí, nada mais dá certo para o infeliz. Logo de saída, Bill perde o braço esquerdo num ataque à sua nave e tem implantado no lugar dele o braço direito de um de seus falecidos colegas, um negro rebelde e falador. Além de ficar com dois braços direitos, tem de enfrentar a rebeldia do braço implantado, que nem sempre concorda com as ordens que recebe. Isso é só um aperitivo da confusão que se torna a vida de Bill, sempre envolvido em situações de perigo por conta da burocracia imperial, da idiotice de seus companheiros ou de sua própria estupidez.
Mais sutil é o humor do excelente Damon Knight (1922-2002) em O outro pé (The other foot, 1966). Knight foi um autor da geração New Wave da fc (anos 1960 e 1970). Essa história, um dos poucos trabalhos do autor publicados em português, conta da situação inusitada de um homem que, por um capricho da natureza, tem sua consciência trocada com a de um alienígena. Preso num corpo estranho, o homem vai tentar reverter a situação, mas terá de enfrentar os instintos de seu novo corpo, que vão dominando-o pouco a pouco, enquanto o mesmo ocorre com seu antigo corpo, que agora tem a mente do alienígena.
A sutileza máxima do humor as vezes negro, outras apenas ácido, pode ser encontrada permeando toda a obra de Kurt Vonnegut Jr. (1922-2007), um autor de fc que rejeitava o rótulo. Vonnegut foi um dos poucos autores de fc bem aceitos no ambiente mainstream (a literatura não-fc), justamente porque sua ficção é muito diferente do usual. Seu romance mais conhecido é Matadouro 5 (Slaughterhouse-five, 1969), uma história meio autobiográfica que conta o horror do bombardeio a bucólica cidade de Dresden pelos aliados durante a II Guerra Mundial, misturado aos delírios do personagem que acredita ter sido abduzido e viver uma existência paralela num zoológico alienígena, acompanhado por uma famosa atriz de cinema.
Outro autor que gostava de uma boa piada em seus textos era Isaac Asimov (1920-1992). Russo radicado nos EUA, Asimov é um dos pioneiros do gênero e escreveu centenas de livros de ficção e divulgação científica. Mestre em apresentar conceitos científicos de forma agradável e facilmente inteligível por leigos, Asimov é o autor de fc preferido dos brasileiros. Seus romances não eram especificamente cômicos, mas o autor reconhecia a enormidade do próprio ego e constantemente fazia piadas com isso, colocando em muitos de seus textos um alter-ego para ser ridicularizado pelos outros personagens. Esse humor sutil, inteligente e bem comportado está presente em todos os seus textos, não é preciso destacar nenhum em especial, pois Asimov foi um escritor tão regular que qualquer deles apresenta essa característica.
Mais um autor de destaque no gênero é o norte-americano Jack Vance, nascido em 1916 e o único desta relação que ainda está vivo. Vance escreveu uma comédia cujo título já ri de si mesma: Ópera interplanetária (Space opera, 1965). Tudo faz crer que se trata de uma space-opera, subgênero da fc que costumeiramente utiliza ambientes espaciais para contar aventuras de guerra e heroísmo, como o filme Guerra nas Estrelas, por exemplo, mas não é nada disso. Vance conta mesmo a história de um corpo de ópera, com coral e orquestra completos, que viaja pelo universo para levar a refinada arte terrestre aos seres incultos de outros mundos. Mas acontece que os alienígenas não pensam como nós e as apresentações da tal ópera nunca têm o resultado esperado.
No Brasil, sendo a fc um gênero pouco publicado, há ainda menos exemplos de humor. Contudo, o pouco que há, é excelente. O fruto maduro da civilização (1993) é uma coletânea de contos e o único livro de fc de Ivan Carlos Regina, autor paulista de uma ironia refinada que se pode conferir na leitura de "A derradeira publicidade do hebefrênico Alfredo", "O tempo é um carrasco impiedoso" e outros textos que, além de engraçadíssimos, são parte do que de melhor já se escreveu no gênero por estas paragens.

Um comentário:

  1. Por essa eu não esperava: humor em "O Mundo Perdido" de Conan Doyle?

    Dos demais eu só li mesmo a série de Douglas Adams; impagável.

    Fiquei muito curioso quanto ao "Ópera interplanetária" de Jack Vance e ao "O fruto maduro da civilização", mas imagino que não deva ser nada fácil colocar as mãos nessas preciosidades.


    Abraços,
    T.K. Pereira – o Escriba Encapuzado
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