segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Páginas de sombra

Páginas de sombra: Contos fantásticos brasileiros, Braulio Tavares, org. Ilustrações de Romero Cavalcanti. Editora Casa da Palavra, Rio de Janeiro, 2003.
Não é de hoje que alguns estudiosos buscam identificar claramente a evolução da literatura brasileira especulativa, mas a memória do fandom brasileiro, até bem pouco tempo, não ia além dos anos 1980. A maior parte do conhecimento a respeito da fc&f nacional era fruto da observação em primeira mão e o que veio antes era misterioso, desconhecido e até secreto.
Graças aos estudos de Braulio Tavares (Fantastic, fantasy and science fiction literature catalog, Biblioteca Nacional, 1992), Roberto de Sousa Causo (Ficção científica, fantasia e horror no Brasil: 1875 a 1950, UFMG, 2003), M. Elizabeth Ginway (Ficção científica brasileira: Mitos culturais e nacionalidade no país do futuro, Devir, 2005), entre outros, a história da fc&f nacional começou a se revelar de forma mais profunda, motivando novos pesquisadores a trabalhar também em outros ambientes midiáticos, ampliando o alcance dos gêneros na cultura local.
Contudo, ainda há muito a ser redescoberto, especialmente o campo da ficção curta, muito mais difícil de identificar. É sobre esse formato que se debruçou Braulio Tavares ao montar a antologia Páginas de sombra: Contos fantásticos brasileiros. Provavelmente inspirado na antologia O conto fantástico, organizada por Jerônimo Monteiro, (Civilização Brasileira, 1959), Tavares garimpou ainda mais que o seu antecessor, para montar um panorama abrangente do fantástico na literatura nacional, no que foi muito bem sucedido.
A antologia é aberta por um detalhado ensaio chamado "Nas periferias do real ou O fantástico e seus arredores", do próprio organizador, que justifica e conceitualiza o trabalho de reunir os 16 textos que formam a coletânea, todos de autores consagrados no mainstream que não se furtaram em avançar no campo do fantástico quando julgaram relevante fazê-lo, e com resultados apreciáveis tanto no aspecto formal quanto no de conteúdo. Além disso, cada um dos contos vem precedido de uma breve contextualização do respectivo texto na história da literatura brasileira e na obra do autor, revelando detalhes e curiosidades saborosíssimas, uma atração a parte.
O primeiro conto é uma pequena joia: "Flor, telefone, moça", do mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), poeta maiúsculo da língua que também cometia ficções. Neste conto curto, publicado originalmente em 1951, uma é jovem assediada ao telefone – então uma revolucionária novidade tecnológica no país – por um suposto fantasma que exige que lhe seja restituída a flor subtraída por ela de seu túmulo.
"A podridão viva", de Amândio Sobral (1902-????), é um achado, de um autor tão obscuro que praticamente a única fonte de informações sobre ele é justamente a biografia que Tavares relatou na apresentação do conto. O texto foi publicado originalmente em 1934 e fala sobre um comerciante de marfim que testemunha o indizível numa malfadada expedição de caça na África.
O conto seguinte é de um autor já reconhecido pelo fandom, o mineiro Murilo Rubião (1916-1991), que construiu toda a sua carreira literária na fantasia. Tavares selecionou aqui o bizarro "Teleco, o coelhinho", publicado originalmente em 1965, no qual um homem recolhe em sua casa um ser metamorfo que muda de aparência conforme o estado de espírito. A princípio, a relação é divertida, mas deteriora-se ao longo do tempo até que a vida em comum se torna insuportável.
Outro autor que geralmente é lembrado pelos especialistas quando relacionam autores de fc&f brasileiros é o paraibano Berilo Neves (1901-1974), autor de sucesso em seu tempo, mas pouco lido pelas novas gerações. Dele temos "A última Eva", de 1934, tragicômico relato de ficção científica sobre a morte da última mulher – e, por conseguinte, da espécie humana – depois que uma praga varreu o gênero feminino do planeta.
Lilia A. Pereira da Silva é a primeira de três autoras publicadas por Tavares nesta antologia, e uma grata surpresa dentro do panorama da ficção fantástica nacional. Paulista de Itapira, Lilia publicou mais de noventa livros, entre os quais está a perturbadora coletânea Monstros e gênios, de 1965, de onde veio o conto "Máquina de ler pensamentos", no qual uma cientista que faz experiências com a mente a partir de estátuas decide passar a seres humanos e escolhe um menino de rua para ser sua primeira cobaia.
O texto seguinte é bastante conhecido dos leitores; trata-se da novela "A escuridão", do atibaiense André Carneiro (1922-2014), um dos textos mais lembrados entre especialistas, presente em inúmeras antologias nacionais e estrangeiras desde a sua primeira publicação, na coletânea Diário da nave perdida (1963). Conta a tragédia que se abate sobre a humanidade quando, repentinamente, todos ficam cegos. Ideia semelhante apareceu antes no romance O dia das trífides (The day of the triffids, 1951), do britânico John Windhan (1903-1969), mas neste clássico brasileiro o tema tem um tratamento mais maduro e sofisticado.
"A casa sem sono" é a contribuição do escritor maranhense Coelho Netto (1864-1934), conto publicado em 1923 no qual um homem é desaconselhado a adquirir uma linda mansão depois que seu amigo relata a experiência estressante que teve quando morou ali. Coelho Netto, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, também foi um autor de grande sucesso em sua época, que nos legou uma rica bibliografia especulativa, mas é praticamente desconhecido dos leitores de hoje.
O paulista Origenes Lessa (1903-1986) aparece com "A gargalhada", texto de 1963 de verve profundamente irônica, que relata o rápido desmoronamento da civilização a partir de um evento cômico, mas inegavelmente perturbador: uma gargalhada que irrompe, sem aviso, em meio às transmissões de rádio e televisão.
"O satanás de Iglawaburg", do capixaba Adelpho Monjardim (1903-????), envereda pelo horror gótico. Em algum momento antes da Primeira Guerra Mundial, uma pintura macabra aparentemente causa desastres num castelo medieval todas as vezes que alguém a tenta destruir. Monjardim se instala na categoria dos políticos escritores, pois foi Prefeito de Vitória, cumpriu pelo menos um mandato de Deputado Estadual e ainda encontrou tempo para escrever muitos livros de ficção especulativa, entre eles a coletânea A torre do silêncio (1944), na qual primeiro apareceu este texto.
Machado de Assis (1839-1908) não pode faltar em qualquer antologia de contos brasileiros e, para nossa sorte, não faltam contos de ficção especulativa em sua bibliografia. "As academias de Sião", publicado em 1884, é uma fantasia oriental com um surpreendente conteúdo feminista e transgênero. Conta a história de um rei sensível e inseguro e sua concubina decidida e autoritária, que decidem trocar de corpos através de um feitiço para confrontar as especulações filosóficas de duas academias rivais a respeito da sexualidade da alma.
"O caminho do poço verde", conto de 1994 do escritor carioca Rubens Figueiredo – já duas vezes vencedor do prestigioso Prêmio Jabuti –, é mais um achado do organizador. Conta as andanças de uma jovem mochileira em férias por rincões do interior sertanejo, onde experimenta o sobrenatural das comunidades isoladas. O conto não tem um componente fantástico explícito, mas o clima sombrio da narrativa, mesclado a alguma ambiguidade nas informações, é eficiente para criar um cenário mágico e misterioso, numa das mais intensas experiências literárias da antologia.
A carioca Heloísa Seixas é a segunda autora a aparecer na seleta, com o conto "Íblis", publicado em 1995, provavelmente na coletânea Pente de Vênus: Histórias do amor assombrado. Relata a experiência de uma acadêmica sofisticada em férias pela Europa, que tem um encontro ardente com a morte durante uma viagem de trem. Ainda que seja um texto curto, destaca-se por sua intensidade sensual.
A terceira autora do grupo é a também sempre lembrada Lygia Fagundes Telles. Paulistana de nascimento, esta grande dama da literatura brasileira quase sempre aparece nas antologias de gênero com "A caçada" ou "Seminário dos ratos", mas o organizador optou aqui pelo assustador "As formigas", conto de 1977 em que duas mulheres hospedadas num quarto de pensão, testemunham um exército de formigas, noite após noite, montarem o esqueleto de um anão abandonado ali em uma caixa.
"Luvibórix", do cearense Carlos Emílio Correia Lima, contribui à seleção com um contrastante texto pós moderno originalmente publicado em 1986. Conta sobre o momento sagrado em que o dragão místico Luvibórix, que dá forma à realidade com seu olhar, decide subir a superfície do planeta e, conduzido por um sacerdote, contemplar as ruínas da civilização que lhe serve de alimento.
"Os olhos que comiam carne", do maranhense Humberto de Campos (1886-1934) é um interessante exemplo da conjunção espontânea de ideias: publicado originalmente em 1932, antecipou a história do clássico filme de Roger Corman, O homem dos olhos de raio X (X: The man with the X-ray eyes, 1963). Conta sobre um homem cego que, submetido a uma cirurgia experimental revolucionária, recupera a visão de um modo traumático. Campos é, assim, mais um membro da Academia Brasileira de Letras que, ao lado de Machado de Assis, Coelho Netto, Antonio Olinto, Zora Seljan, Dinah Silveira de Queiroz e Rachel de Queiroz, entre outros, trabalhou bem com o fantástico em sua obra.
A edição é fechada pelo inolvidável "Demônios", do também maranhense Aluísio de Azevedo (1857-1913), um dos grandes clássicos da ficção especulativa brasileira, digno representante da estética da weird no País. Fantasia, horror e ficção científica se amalgamam para contar os últimos dias da humanidade depois que um estranho fenômeno apaga o sol e transforma as pessoas em seres rastejantes sem intelecto.
Páginas de sombra cumpre, assim, o importante papel de iluminar regiões fronteiriças da fc&f brasileira que, por muito tempo, se acreditou ser território exclusivo da ação de fãs desprezados pelo mainstream, mas, pouco a pouco, revela-se um campo de tradição muito maior e que precisa ser estudado. Fica claro que a literatura brasileira não ignorou a literatura de gênero, pelo contrário, a praticou com qualidade e aqui estão 16 inegáveis exemplos disso (sem esquecer também da ótima antologia Contos macabros: 13 histórias sinistras da literatura brasileira, organizada por Lainister de Oliveira Esteves e publicada em 2010 pela Editora Escrita Fina, resenhada aqui). Muito ainda espera ser redescoberto e são pesquisas como esta que dão satisfação de ver que nunca estivemos sozinhos, e sim muito bem acompanhados: só é preciso olhar para o lado.

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